RUI MOTTY NA REVISTA MAKEBA

RUI MOTTY NA REVISTA MAKEBA

26
MAI
2022

Artigo de Rui Motty na Revista Makeba.

Dilemas da Memória de um Africano

Como definir este dilema individual e coletivo da africanidade? Não será, pois, através da apropriação casual no tempo e na geografia de um assento de nascimento. Tão pouco o que se pisa dia após dia, até à negação das sandálias e calções. Menos ainda essa espécie de evocação romântica, em modo customizado de "África Minha". A melancolia do fogo que tinge o entardecer, inflamando o horizonte poente. Talvez seja uma identidade onde, pelos veios da pele percorre um formigueiro denso à conta do desassossego de coisas vistas e vividas. Muitas foram as gerações consumidas por privações.
 
Sem escolhas, insignificantes, restando-lhes aquela incompreensão e silêncio no olhar. A africanidade não morre à primeira fumigação, nem nas seguintes. Não se encarcera em círculos, seja qual for a dimensão. Por conveniência de proximidade, nasci em Blantyre. Toda a memória da minha primeira vida até ao momento de vestir calças, foi Quelimane. De relance, esse tempo parece impercetível. Galgou veloz, tarde dei conta da sua fortuna. Mãe, católica de Lisboa, pai moçambicano, muçulmano, um desígnio complicado de muitas contradições para a época. O romance entre a colona branca e o indígena. Foi atrevimento do amor e tanto.

Esse encantamento ditou desde o início a diferença como pessoas. E prolongou-se, para frente e para sempre. Pelo menos neste mundo em que ainda hoje vivemos. Nasceram três, os filhos da branca, assim os chamavam.
Sem maldade, apenas a lembrar privilégios, demasiados para aquela terra. Era assim.
Não creio que nascer e viver em África, faça de nós mais africanos. O apego à africanidade não deriva do acervo das lembranças de uma vida de regalias. Essa é a memória coletiva dos que regressaram a Portugal e de muitos dos que ficaram. Daqueles que não ficaram com a mácula da segregação e do desassossego inconformista amigo de culpa, mesmo que subtil. Dos que podiam fazer escolhas. - Ahh! É verdade! Nesses não corre formigueiro nem culpa. Esse apego não desaparece com revoluções e contagia outros lugares. A história explica isso.

No tempo que ainda lembro, Quelimane tinha gentes iguais a tantas outras por essas geografias. Em Quelimane, o sossego inquietava-se com o gemido da corrente ferrugenta no pedalar preguiçoso. Com o agitar das fitas coloridas nos punhos e no assento da ginga. Com o ruído da telefonia, firmemente empunhada ao ombro, difundindo em onda curta a emissão africana echuabo. Uma Kalashnikov não letal. Ouvia-se, primeiro longínquo, depois forte e, muito lentamente, levado pela distância e a respiração abafada do alcatrão, desaparecia. Ao mesmo tempo, confiantes, as gentes possuídas pelo calor e pela sesta, nem davam pelo guerrilheiro furtivo marchando vitorioso pela cidade. Poderia ser uma marcha solitária se não fosse a afirmação de um continente inteiro. Em Moçambique, nem todas as batalhas se fizeram de mato.
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